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sexta-feira, 10 de abril de 2015

NÃO TEMOS CULPA DE AINDA NÃO TER MORRIDO



A voz soava enérgica e bem timbrada, apesar da idade. Num programa da manhã, da Antena 1, que oiço por vezes enquanto faço outras coisas. É popular, pois os ouvintes podem expressar ali as suas opiniões sobre temas que, em geral, têm alguma profundidade
Ouvi muitas outras vozes nesse programa: na sua maioria, foram queixas sobre as dificuldades da vida, particularmente na velhice, falta de saúde, de cuidados, falta de dinheiro, indiferença da família.

Mas aquela voz destacou-se das outras pela energia, pela força e coerência que irradiava. Falou com rigor e precisão das suas dificuldades, os magros troco difíceis de juntar para comprar um coelhinho para domingo de Páscoa que ao bife não consigo chegar.

E os trocos que tinha não foram suficientes. Ainda fiquei a dever no talho €1,84. Já está ali em cima do aparador para o ir pagar. Fiam-me porque, apesar de pobre, sabem que sou de contas.

Falou longamente, com muitos detalhes. Uma certa autoridade natural impedia o locutor de a interromper, como é frequente em programas como este com o tempo contado.

Falou, falou muito a senhora idosa e só. A senhora a padecer das maleitas próprias da idade, sem meios para fazer face às necessidades básicas de saúde e bem estar, dados os cortes nas pensões, nos subsídios complementares, os impostos, os impostos que crescem e levam tudo. Não há direito que nos façam isto! A gente não temos culpa de ainda não ter morrido.



Baque. Coração apertado. Indignação. Alma em fogo.

Mas que mundo é este, que raio de civilização é esta que pretensamente construímos se, no ocaso da vida, um ser humano – que já não produz riqueza palpável – sente necessidade de se  justificar e como que pedir desculpa por continuar vivo?

Sebastião Salgado
Que esperança pode ser a nossa, que fé podemos nutrir, de que tamanho, cor, fragrância é a consciência de uma sociedade que empurra os seus anciãos para a indignidade de uma vida miserável, os atira para uma solidão escabrosa e ainda por cima os faz sentir culpados pelo fardo e pela despesa que representam para o estado e para as famílias?




Não quero pactuar com este mundo obsceno, recuso-me à heresia de não venerar a vida que se apaga mas cuja trémula chama  é  o sinal inequívoco de um caminho feito, de muitos esforços e afectos distribuídos, de mais uma tentativa de avançar. Em retrospectiva, talvez já só um postulado, mas amplamente reconhecível pela alma.

Amén.

sábado, 4 de abril de 2015

NINGUÉM AMA NINGUÉM




pergunto se foi por mim

ou pelo calor inesperado

dos meus gestos

que a mim vieste

TESSA ESTATE
(poema Estátua Pensante  excerto)




Ninguém ama ninguém, disse. Uma névoa fina, misto de sabedoria e cepticismo, toldava-lhe os olhos fundos embutidos numa perspicácia natural e na experiência de uma vida já longa.

Ninguém ama ninguém, são tudo trocas. Mas pode haver um espaço sagrado para um certo tipo de troca



Fiquei a olhar para dentro de nada, ou seja, a certeza da não-convicção. O choque causado pelo oposto daquilo em que nos habituámos a acreditar origina uma espécie de paralização interior, um limbo de interrogações e de impasses, um corpo oco a rolar perdido pela encosta abaixo da desconstrução.



A verdade é que muitas vezes suspeitei. Amiúde me questionei secretamente sobre possíveis motivos ulteriores de amizades, amores, atenções várias. A análise levou-me invariavelmente a duvidar da qualidade da minha auto-estima, seguramente na base de tanta dúvida. Com os anos, apaziguei, ao transferir a minha atenção mais para os meus actos e as minhas motivações, sem deixar de ver as dos outros. Isto, no final das contas, deve dar tudo certo, penso sempre. É um modo de arrumar a questão ou…de a adiar.

Agarramo-nos à ideia do amor do outro pelos nossos belos olhos, alma e méritos e hoje penso que esse é um ponto de partida errado, algo narcísico.



Tudo se prende afinal com crenças.  Tudo está ligado a esta sociedade moderna antiseptica e infantilizada, em que as coisas, inclusive os sentimentos, estão previstas e formatadas para ti a priori, sem te deixar espaço para a libertação das forças criativas que te habitam nas profundezas.

Ninguém ama ninguém. Para aí nos dirigem e nos dirigimos, pois as estruturas de funcionamento à superfície assentam essencialmente na troca de cariz commercial, no deve e no haver. Essa situação carece de denúncia, como a minha amiga faz, mas não de total validação.

É que a humanidade terrestre caiu num esquecimento retrógrado e involutivo de que é o amor a grande força capaz de contrabalançar as patologias do ego como a posse, a titularidade, a arrogância, o inflacionamento do passageiro. O ser humano faz hoje tudo ou quase tudo em função daquilo que o parece beneficiar no imediato, inconsciente da importância vital de olhar nos olhos o diferente, o não estabelecido, o mal. O mal que tem costas largas mas que urge acolher com seriedade, quando ele se apresenta no nosso caminho. É imperativo tentar compreender a sua origem e a ambiguidade onde se encaixa com o bem.



O espaço sagrado da troca entre os seres é o exercício da vida curada das suas patologias, representa a neutralidade e a compaixão ante as aparentes deficiências alheias e ante as próprias. O reconhecimento, afinal, de que pouco sabemos mas que a este coração que bate sem cessar dentro de nós, corresponde um outro, menos palpável mas mais poderoso, habitado por um potencial infinito e contínuo de uma força balsâmica e estruturante a que nos habituámos a chamar amor. Não há deve e haver nessa plataforma, apenas a certeza de que não estamos sós. A sua prática liberta-nos do pecado da infantilização e nutre a paz interior.
Uma raridade, ao que parece.

Litografia: MONTSERRAT GUDIOL