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domingo, 27 de outubro de 2013

CAMINHAR QUANDO TODA A GENTE DORME



Caminhar quando toda a gente dorme foi sempre a grande tentação. O usual, o aprovado, o estabelecido, o esperado ou o previsível, nunca me alumiaram por dentro ou atearam o meu fogo vital. Repetir o velho fado, alegre ou triste, acaba por levar ao tédio e desmotivar, não obstante todos os aspectos de conveniência que possa apresentar, pois conduz ou a inexplicáveis angústias e mal-estar recorrentes e aprisionantes ou à paz podre.

Busco a outra face da vida, aquela que ainda se não apresentou, a que não figura em nenhum catálogo, aquela cujo reconhecimento e integração me hão-de permitir ver-me livre do Bem e do Mal, como conceitos separados e opostos. Por mais historietas que nos contemos, o pulsar energético aí está, cada vez mais óbvio na bipolaridade da sua composição: dia e noite, escuro e claro, vida e morte, bem e mal. A simultaneidade destas presenças opostas entra-nos hoje pela consciência dentro, de forma quase forçada, pois o anjo que nos alivia a tensão e adeja sobre a nossa alma com o sopro do alívio pode incorporar na hora seguinte os cruéis demónios da violência e da separatividade.

Assim, eu gosto de caminhar quando toda a gente dorme. De me aventurar no breu, de abrir o troço, a roça por onde ninguém antes passou e buscar os secretos recantos donde originam as germinações secretas, os velados começos que contêm a chave de manifestações futuras. Penetrar os espaços que me ensinaram a nem sequer imaginar e neles assistir ao convívio das forças ancestrais aliadas das trevas com as que, translúcidas e leitosas, ascendem como fachos dançantes aos céus que quase todos sonhamos. Diversas, opostas, aparentemente contraditórias mas complementares, elas proporcionam-me através da tensão existente uma mais segura plataforma de posicionamento em relação a tudo, em especial a mim mesma.

Como gosto de caminhar quando toda a gente dorme. Sentir o firme pousar dos meus pés feitos heróis, como os antepassados que ao desconhecido mar se lançaram, na hipnótica visão da descoberta. Esse é o legado que me interessa, o único que aceito e que integro na noção de Mátria.
Minha Terra Portucalis do sentir, meu Espaço-Espírito-Santo ancorado algures na dimensão que ainda não baixou ou a que eu e os outros – os que forem para ser – ainda não subimos! Mátria nossa, doce porto de elevação e de assombros, o mero pressentir-te me emociona. Pois em ti residem, desde os primórdios dos tempos, a essência de se ser, o potencial de tudo o que de abarcante, visionário, mundividente e cósmico eleva o canto dos poetas e o retém nos éteres para nosso benefício.

Gosto de caminhar quando toda a gente dorme mas...onde estarei eu quando já ninguém dormir?
Quadro: Remedios Varo, "A Caçadora de Astros"


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

TOCHA NO FEMININO




Alguém colocou recentemente no facebook um post sobre Camille Claudel.

Alguém a mencionou e…lembrei-me. Abateu-se sobre mim outra vez o peso imenso, a dor sem limites, inerentes à passagem pela Terra dessa mulher talentosa e bela, pela segunda metade do século XIX e a primeira do XX.



Livre, selvagem, infinitamente aberta à vida, Camille revelou desde muito cedo um talento extraordinário para a escultura. Criou obras fabulosas, palpitantes de interioridade, reflectoras do feminino, inovadoras na concepção e no movimento. Num mundo ainda intrínsecamente patriarcal, Camille luzia com intensidade pouco comum – uma tocha no feminino que urgia abater.



Discípula e amante de Rodin, levou à vida deste o manancial das suas múltiplas ideias, o perfume e a natureza lírica de um talento raro.

Apesar da tumultuosa paixão entre os dois, o escultor nunca deixou a mulher e, após um aborto indesejado, Camille recolheu-se só e chocada, apenas na companhia dos gatos e da sua obra. As dificuldades conómicas, a má alimentação e o isolamento afectaram a sua delicada sensibilidade e começou a sofrer surtos psicóticos. Nesse contexto, destruiu dezenas de obras suas.



Apesar de ter tido o apoio do pai que morreu cedo, a família de origem, preconceituosa e burguesa, jamais a entendeu,.  Perante o percurso errático e pouco ortodoxo e a instabilidade mental que se ia revelando, o irmão mais novo – o muito admirado poeta e ensaísta Paul Claudel – e a  mãe internaram-na num hospício onde sobreviveu, em condições terríveis, por mais trinta anos. Apesar do próprio hospital ter tentado várias vezes que a família reintegrasse Camille por considerar desnecessário o seu internamento, a família nunca mais a quis de volta e a escultora permaneceu encerrada até ao último suspiro.

 

Torna-se impossível imaginar o sofrimento atroz desta mulher, completamente consciente do que lhe estava a acontecer como demonstra a sua correspndência. Esmagada por um mundo masculino, brutalmente castrador da força lillitiana do feminino, Camille pagou duramente o ser diferente, livre e assumida e pereceu, após uma longa vida, aos rigores da existência que a família lhe impôs.

De delirio em delirio, de crise em crise, murchou a flor magoada, apagou-se o brilhante fogo daquela alma tão à frente do seu tempo. Deixou enfim o seu tormento na cama do hospício, aos setenta e nove anos, após trinta de clausura forçada.



Camille, mulher excepcional, a tua dor viaja no tempo até mim, sinto-a nas minhas células.
Corre um canto estremecido por dentro das minhas lágrimas, pois eles estilhaçaram a tua grandeza e ficaram impunes.



À posteridade, passaram Rodin e o teu irmãozinho, Paul Claudel.
Mas estamos sempre a tempo de reescrever a história .

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O PROGRAMA DE RÁDIO


Passei há pouco tempo por uma experiência que me leva a reflectir sobre o andar dos tempos.



Fui convidada por uma pequena rádio regional para ser entrevistada sobre a poesia, o amor, o estado do mundo para um programa de domingo.

Um pouco às cegas – e porque tinha assumido o compromisso uns meses antes - lá fui, numa manhã ensolarada de fim de verão e sem saber o que me esperava, ao encontro das pessoas que amavelmente me haviam convidado. Durante três horas, vivi com a responsável pelo programa e dois colaboradores a  extraordinária aventura de falar livremente na rádio sobre temas que são próximos ao meu coração – a emergência do feminino no mundo, a mudança de paradigmas a instalar-se em todas as áreas da existência humana, arte, criatividade, o regresso ao natural. Tudo entremeado com chamadas de ouvintes que também declamavam a sua poesia e mostravam apreço pelo que se estava ali a discutir. Sem censuras, nem edições. Em directo.



Gosto muito de rádio, um meio que não nos monopoliza e nos permite continuar com as nossas tarefas, enquanto escutamos o que a telefonia nos oferece. Mas em nenhuma das estações de rádio a nível nacional ouvi alguma vez um programa com as características deste, muito menos com três horas de duração.

São a política, o futebol, as coscuvilhices e a música da moda – tudo distracções ao que deveria ser o foco principal da nossa vida – que ocupam as transmissões radiofónicas.



Então o que é que este episódio me diz sobre o caminho do mundo? Muito simples: o esperado não é o que vai acontecer.

As histórias que nos contaram, desde as revoluções industriais, passando actualmente pela tecnológica, não vão encontrar correspondência na alteração dos paradigmas. Os ventos de verdadeira mudança virão dos lugares e das pessoas mais improváveis, porque não demasiado comprometidos com os credos de um sistema assente na separatividade dos seres, na competição e no lucro a qualquer preço.

Precisamos de novas histórias, novos mitos que nos permitam recuperar a inocência perdida e em simultâneo trabalhar na construção do conhecimento, processo para o qual não há atalhos e que é indispensável à saudável residência no planeta.



Ocorrências como o programa de rádio regional que se debruça sobre coisas essenciais à vida e dá espaço para que falemos longamente sobre elas, gestos solidários que vejo irromperem espontâneamente por todos os lados em especial nestas alturas de crise, o foco renovado sobre o que tinhamos por garantido e a que nunca prestámos a devida atenção, as implicações da crise ecológica actual e que nos desperta à força para o respeito devido a tudo quanto vive à face da Terra, em suma, a nossa humanidade que temos de resgatar da longa noite de um ilusório progresso são o mote para a tentativa de começar de novo, de forma mais autêntica e conectada com o todo.