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sexta-feira, 26 de abril de 2013

REVISITANDO COLEGA DA ESCOLA PRIMÁRIA

Baixinha, rosto doce, feições regulares e aqueles olhos amendoados de um verde raro, como que temperado de matéria apaziguante. Recordo-te como eras então, Regina. Minha companheira de turma da primeira à quarta classe, sempre juntas, partilhávamos o recreio, o lanche, as confidências, chamavam-nos a Pequena e a Grande, pelo contraste das silhuetas.
(Bom sentir-te aqui na carteira, ao meu lado. A intimidade dos papelinhos trocados, à revelia do olhar atento da professora, com as últimas lá de casa, os apertos de coração perante as injustiças dos adultos, o meu poema de ontem à noite que te adoça ainda mais o olhar. "Não descanso enquanto não publicares, este é uma obra de arte, sente-se mesmo." Ajudo-te nas redacções, apaziguas-me neste fogo que sempre me leva a ferver em pouca água. Fala, rapariga, vamos apanhar azedas. Sabemos tudo uma da outra e sonhamos com o vasto mundo que de certeza existe mais além das fronteiras salazarianas. Um dia, havemos de fazer e de acontecer. Mudar o mundo, publicar livros, salvar os pecadores, viajar e ficar em hotéis. Paris, Londres, Nova Iorque.
Juntas, exame de admissão ao liceu e à escola técnica, de autocarro sozinhas pela primeira vez. "Vamos sempre ficar juntas, até ao fim da vida, fazer coisas fantásticas." Melhor que todos, a Regina. Que a mãe e o pai, que os manos, que toda a gente. Íntima, perto deste meu agreste coração selvagem, ela percebe, acalma, ajuda a recompor a atitude, espelha com entusiasmo a incipiente poesia que produzo, às carradas.)
O exame de admissão separou-nos como uma foice cruel. Não entrou para o liceu, era uma aluna apenas mediana. Apanhávamos depois o mesmo autocarro, mas tínhamos de sair em paragens diferentes. Os caminhos foram-se apartando, até ao quase esquecimento.
Quase, mas não totalmente. Voltas sempre, dentro de mim nas horas mais turbulentas, nos grandes impasses, se eu tivesse uma Regina para me amparar… Se eu pudesse contar com a sua tranquila atenção ao fogo do meu discurso, o olhar de fim de tarde estival a amornar os meus excessos…
Um dia vejo-te, depois do reencontro no facebook. Almoço na Rua Braamcamp, perto do escritório. Tão igual a ti mesma, pequenina e regular, umas poucas rugas, quase nada, mas tão longe de ti em mim. Palavras que não saem, em nenhuma de nós. O teu olhar já não é tranquilizante, vejo-o parado, sem expressão. Contenho-me. (Não mostres o desapontamento). A custo, lá vêm as tretas do costume, casamentos, divórcios, as gracinhas dos filhos, o custo da vida. Não aguento, não é possível! 
Disparo, à queima-roupa. "Regina, que te aconteceu, que é feito de ti, irmã da minha alma?"
Por um segundo, o lampejo antigo, o da imagem guardada desde a infância. Mas não. A voz, num suspiro, mal se ouve.
"Desisti."

terça-feira, 23 de abril de 2013


CARTA AO MEU PRIMEIRO BRINQUEDO

Deves ter existido, com certeza. A cada criança chega sempre esse primeiro objecto, espécie de jangada de onde se lança à descoberta de si a e do que a rodeia. Pode ser qualquer coisa, uma roca, um peluche, uma boneca. Carrinho mecânico, peças de encaixar ou um alegre tambor. Qualquer coisa que pela cor, forma, som, estimule a imaginação do pequeno ser recém-chegado à densidade povoada de mil formas e de outros tantos mistérios.
Exististe, não tenho dúvidas. Um dia, o veludo dos meus olhos inocentes encontrou-te e em ti ficou preso, fascinado, curioso. As mãos pequeninas agarraram-te uma e outra vez, sempre mais sôfregas de ti e dos teus segredos, estou certa que te cheirei e te mordisquei as pontas, que me meti contigo na cama e que chorei desalmadamente quando um dia ninguém lá em casa te conseguiu encontrar.
O estranho é que não me lembro. Por mais que vasculhe a memória, nada encontro. Nem o rasto de uma linha especial, da impressionante cor, dos por certo inesquecíveis contornos. Nada, nada retive, a memória trai-me, engana-me. Prega-me a partida da ausência, um vazio oco a sobrepor-se àquilo que seguramente vivi contigo, nos tenros dias da primeira infância.
Decido perguntar à mãe, velhinha e cansada, se se lembra de ti, o meu primeiro brinquedo. Como era, quem mo deu, o que é que eu fazia com ele. Fica pensativa, a reacção lenta, os olhos baços quase invisuais a revirarem sei lá que páginas das suas lembranças de quando era a mulher todo-poderosa que à vida me trouxe.
« O teu primeiro brinquedo...? Não sei se me lembro...Mas para que é que queres saber isso, agora?» – esboça-se uma espécie de pré-sorriso nos lábios finos, descolorados. Balbucio qualquer coisa, preciso que ela fale.
«Olha, tiveste muitos. Foste a primeira, todos te cobríamos de prendas, uma loucura. Mas se bem me lembro, tu nunca foste muito de brinquedos. Não ligavas. Eras era muito conversadora. Desde pequenina que falavas muito bem, repetias com gosto as palavras que ouvias e que mais te agradavam. Mal pudeste,
agarraste-te à escrita. Tinhas uma lousa, daquelas antigas que as crianças usavam antigamente nas escolas e nela escrevinhavas todo o dia.»
Ah, encontrei-te, encontrei-te meu brinquedo antigo! De facto, nunca nos separámos, tens sido o meu grande amor desde que provei a musical força criativa que te habita. Obrigado, palavra, meu primeiro e eterno brinquedo!